quinta-feira, 17 de junho de 2010

Memórias da Inclusão: entrecuzando passado e presente para fazermos um caminho diferente"....

Eu me lembro bem...

Há cerca de catorze anos (não é tanto tempo assim, né?!), eu estava iniciando a primeira série do Ensino Fundamental, ansioso para estrear minha cartilha, a "Nova Geração", e conhecer a nova turma. Uma alegria: não era mais um pré-escolar e sim um "escolar". Um desespero:Tinha até medo do que essa passagem poderia significar, com a chegada das notas, das provas, das responsabilidades e ainda o dever de cumprir o horário todinho, quietinho na carteira, ouvindo a professora...
Assim, num misto de contentamento e ansiedade eu me preparava para enfrentar a nova etapa de minha vida, tão curta até aquele momento. Junto comigo, na sala de aula, imagino que os demais enfrentavam os mesmos temores e as mesmas felicidades. Sabem como é felicidade de criança: parece xarope, pois é doce e amarga, às vezes. Mas, não me lembro muito bem daqueles colegas, a não ser do Carlinhos (seu nome verdadeiro não era esse, evidentemente). Carlinhos, além de colega de classe, era meu vizinho, nas redondezas gostosas do nosso subúrbio. Sabem como os subúrbios são poéticos e mágicos, não sabem?! Pois bem, o Carlinhos vivia nessa porção de mundo que nem eu, mas ele era "diferente"(não se esqueçam que pus aspas!!)...Aliás, sua família quase toda era diferente. Eu não entendia bem nem como, nem por que, mas erm e ponto final. Ningúem explicava muita coisa para criaça naqueles idos...(olha que nem sou velho). Lembro da minha mãe, uma senhora muita versada nas coisa da educação, embora tendo apenas a 4 ª série, comentando sobre como seria o fututo do Carlinhos na escola, reproduzindo as angústias da nossa professora. Recordo-me que ela dizia, como era voz corrente, que o tal menino tinha "problemas de cabeça"e dificilmente se alfabetizaria, mas a professora ia tentar. Se ele conseguisse, bem, senão, amém (como falavam os mais velhos que frequentavam a minha casa e eu ficava escutando, agraciado com a singeleza da rima). Acho que era aquela época em que diziam que o aluno com deficiência podia ser matriculado e permanecer na sala regular sempre que possível, sempre que conseguisse se adaptar...
E o Carlinhos começou a 1 série, com seu jeito peculiar, que estranhávamos ou ignorávamos, ou ríamos...Ah! Quando somos crianças, quem pode conosco? Nem o diabo, diria meu tio, prolongado a sua fala com sotaque alagoano, acentuantuando bem o D para meu delírio, como admiraor das variantes do Lácio...Mas voltemos ao Carlinhos, posto que tenho que apressar-me e conter as digressões. Na sala de aula, o Carlinhos tentava e tentava escrever, e....Não escrevia nada, ou melhor, desenhava minhocas, rindo-se muito, aproveitando as saídas da professora para levantar-se da carteira (uma ousadia na época) e rir à larga, jogar-se no chão e esticar mais ainda os rabiscos...A professora, brava, acabava num ato com sua alegria, tão logo retoranava. Carrancuda ou preocupada conosco? Nao saberia dizer, talvez nem ela, acostumada a ser assim e esquecida de si mesma, definida PELO termo vago de professora. E só. Uma tristeza de dó! De novo, uma digressão. Há de ser um vício de cronistas e memorialistas...Esqueçamo-lo, porque preciso contar não de mim, nem dela, a professora, mas dele, O CARLINHOS, gente, que nem sei onde está agora..Pois bem, não deu outra (não é possível, estou apaixonado pela oralidade!), a professora não esperou muito e deu sua sentença, apoiada pela coordenadora, o diretor e outros pais: o destino de Carlinhos era a sala especial, uma salinha pequena e sufocante que nós víamos de longe, na mesma escola, com receio de entrar (talvez porque quem ia não voltava mais!!!, com o perdão do gracejo). Ele foi. Não me recordo se triste, se alegre, mas foi...Pior, mais tarde, mandaram-no embora de vez: foi para a APAE. "Era o melhor a fazer", diziam algumas vozes, que fossem talvez o consciente coletivo, fingindo um pesar mal dissimulado. "Não aprenderia mesmo"..."A família toda, coitado"..."Tem problema grave de cabeça e não entede as letras..."Lá é o lugar certo, a escola tem os outros..."
Isso eu trouxe comigo até hoje, quero dizer, a lembrança triste e inquietante dessas frases. Pergunto-me sempre sobre como seria seu futuro se ele tivesse ficado conosco ou, mais acertadamnte, como seria nosso futuro se o Carlinhos tivesse ficado e se tornado nosso amigo...Seríamos mehores, aposto...Penso ainda na professora, que nada fez por ele, esperou passar o tempo e constatou o óbvio. Foi expectadora de um drama, não propôs alteração no roteiro e seguiu até o fim sua encenação...È, professores tem horror ao improviso...Somente os poetas e cronistas amam o improviso, fazendo deles a metonímia da vida...No entanto, não a condeno, nem critico (por certo, aqui se nota uma dose de afeto que me restou dela ainda, legado do coração pequenino de escolar)...Talvez ela não soubesse agir diferente, não conhecia outras peças, não conhecia a si mesma, estava só...Como fazer diferente? Era mais fácil transplantar esse adjetivo ambíguo-diferente-para o Carlinhos....Ficou assim, então....Eu ia para a escola todo dia, enquanto perto dali eu via o Carlinhos, esperando o ônibus para levá-lo à APAE..., com uma angústia fraquinha me apertando o peito. Peito de menino é tão pequeno e frágil. O do Carlinhos então?!!...................................
Lembrando-me disso agora, quando se passaram os anos e a vida me fez estudioso da educação, dando lá suas armações, e com o peso (ou a libertação?!) da maturidade, não posso deixar de sentir uma grande tristeza pelo Carlinhos que não conheci de fato, que vi de passagem. Mas também não posso negar uma certa alegria, a alegria de saber que Carlinhos se faz presente em cada palavra que falo, em cada esforço que faço pela inclusão escolar, para que os novos Carlinhos vivam melhor, aprendam mais e nos ensinem também...Acho que assim vou me perdoando, vou conhecendo o Carlinhos, vou tornando o menino da 1ª série um homem, um homem "diferente", aproveitando o toda a riqueza polissêmica dessa palavra, com a qual encerro minhas reflexões, deixando o passado para voltar á luta incessante a que me chama, voraz, o presente....
Com todo o carinho do mundo
Giovani Ferreira Bezerra

4 comentários:

  1. Pessoal, este foi um modelo meio extenso de memória, que escrevi especialmente para vocês terem uma ideia. Os fatos apontados são reais, embora exista um trabalho poético com a linguagem, típico de quem rememora algo, como por exemplo, o que faz Machado de Assim, em Dom CASMURRO.Na memória, acabamos dando vazão à subjetividade, mas não percam de foco os fatos ou acontecimentos, pois eles são a base real para a construção literária (ideal) do texto.

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  2. Comentem também...Vamos interagir com as novas ferramentas de pesquisa e estudo.!!!

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  3. Nossa! Estou emocionada e feliz...emocionada pelo destino dado ao Carlinhos, feliz pelo fato ter despertado em vc o desejo de tornar-se um estudioso da inclusão, pois para que ela aconteça de fato, precisamos de pessoas com essa garra e vontade como vc! Parabéns!

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  4. Acho essa proposta de trabalhar com memórias muito interessante para nossa formação!!!!

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